quarta-feira, 11 de maio de 2011

Um Pernambuco que deu certo

Ao ler a coluna de Paulo Nogueira Batista JR., o que sempre faço com prazer e proveito, aprendi que Nelson Rodrigues dizia que, se o Brasil não existisse, o Ceará e o Piauí seriam grandes nações sul-americanas. Para não pensarem que era ironia ou um dos paradoxos hiperbólicos do grande dramaturgo, achei que distrairia talvez os leitores das emoções e sustos das peripécias eleitorais se lhes contasse que acabo de comprovar in loco a veracidade da afirmação.
Estive, de fato, em país que é menor da metade de cada um daqueles Estados nordestinos e mais se aproxima, embora não chegue a tanto, da superfície de Pernambuco. Com pouquíssima coisa a mais que 1% do território brasileiro e sem praticamente nenhum recurso natural, esse país deu o salto gigantesco de uma renda per capitã de 82 dólares, em 1961 – quando o Brasil empossava Jânio Quadros -, para cerca de 9.000 dólares agora – antes da desvalorização da crise de 1997, a renda atingiu 11.385 dólares! Quarenta anos atrás suas exportações totalizavam 41 milhões de dólares, um oitavo apenas das importações, ao passo que as exportações brasileiras eram de 1.405 milhões de dólares, quase 35 vezes mais que as coreanas. No início dos anos 70, os dois países eram comparáveis, com vantagem para o Brasil. Já em 2000, o Pernambuco dos antípodas, pois é de lá que se trata, exportava 172,3 bilhões de dólares, três vezes mais que nós.
Quem chegou até aqui terá adivinhado que falo da Coréia do Sul, pequena grande nação que saiu destroçada da guerra de 1950 a 1953, véspera do período em que JK tentaria fazer com que o Brasil tentasse avançar 50 anos em 5. Em toda a península, as baixas do conflito alcançaram a cifra de 4 milhões, às quais devem ser somadas as da Segunda Guerra Mundial, terminada cinco anos antes. Só a Coréia do Sul teve 1.313.000 baixas, a maioria civis, vendo destruídas 43% das indústrias e 33% das casas.
Como foi possível a esse povo recuperar-se de golpe tão aniquilador e, em menos de duas gerações, alcançar e superar o Brasil, quase cem vezes maior em área, com indústria e exportações, inclusive de manufaturados, muito superiores no início e que nunca sofreu destruição extensa de seus recursos humanos e físicos? Não me arriscarei à explicação exaustiva de fenômeno que mereceu livros volumosos e cuja discussão envereda às vezes pelas trilhas tortuosas da avaliação de fatores intangíveis, como a da ética do confucionismo ou o papel da ajuda americana no âmbito das prioridades da Guerra Fria (não esquecendo, por outro lado, que as despesas militares representaram ônus de 35% do Orçamento e 6% do PIB anuais).
Limito-me, por isso, a objetivo mais simples: identificar três ou quatro causas não-controvertidas e examiná-las com espírito de tirar lições válidas para nós.
A primeira foi o esforço de equalizar relativamente as condições sociais no ponto de partida, mediante a reforma agrária de 1949, que limitou a três hectares a propriedade, de cada família de agricultores. Não estou insinuando que fizéssemos exatamente o mesmo no Brasil, pois são óbvias as diferenças em relação à escassez de terra. Assinalo apenas que, em economia na época dependente do campo em mais de 80%, a reforma equalizou o acesso ao principal fator de produção, conforme se fizera no Japão e em Taiwan, criando as condições de demanda para a industrialização. Conforme observou D.W.Nam, o pai do desenvolvimento do país, a Guerra da Coréia funcionou como nivelador adicional: “Éramos todos igualmente pobres então”. Hoje o problema da desigualdade reapareceu, mas sem nenhuma comparação com a América Latina, onde jamais existiu esforço equalizador similar.
A segunda diferença tem sido a prioridade a uma educação disciplinada e rigorosa, na melhor tradição confuciana. Aqui, a Coréia levava vantagem na largada, uma vez que já dispunha de índice de mais de 90% de alfabetização. Atualmente é um dos raros, mesmo entre os ricos, que universalizaram em quase 100% a educação secundária.
A combinação da primeira e da segunda causa tornou possível à terceira, o rápido desenvolvimento de tecnologia aplicada a produtos de exportação. O lema nacional é alcançar e superar os admirados – mas pouco estimados – japoneses, os antigos colonizadores. Assim como sucedeu no desempenho na Copa, a Coréia passou à frente do Japão em certos itens de tecnologia de informação (36% das exportações contra 27% das nipônicas), em semicondutores, por exemplo, em que os coreanos são os primeiros exportadores de DRAMs desde 1992, o mesmo ocorrendo em computadores LCD de painéis grandes (desde 1998) e em várias áreas de equipamentos de telecomunicações.
Em palestra sobre a competitividade coreana a que assisti, um dos analistas do Instituto de Pesquisas da Samsung definiu da seguinte forma a chave do êxito de seu país: desenvolva sua própria tecnologia, sobretudo concentrando-se em inovação do processo produtivo e em sistema de desenho autônomo. Uma boa ilustração da diferença de abordagem é em relação à indústria automobilística, introduzida no Brasil quase 20 anos antes. Só que nós importamos as transacionais e seus modelos prontos, enquanto os coreanos desenvolveram carros de desenhos próprios, contratando, no começo, “designers” italianos.
A quarta razão do sucesso é a economia voltada para exportações, que correspondem à parcela de entre 35% e 41% do PIB (com as importações, a proporção vai a cerca de 70%). Uma economia como a brasileira não precisaria chegar a tanto, convindo lembrar que, em média, no PIB dos EUA, o peso das exportações é de 11% ou 12%. Não há dúvida, porém, que a capacidade exportadora é que explica por que, após a crise de 1997-1998, a Coréia do Sul zerou, em nove meses, o déficit externo, registra 30 meses consecutivos de saldo comercial desde fevereiro de 2000 e reservas de 110 bilhões de dólares em expansão.
Enquanto isso, no Brasil... Eu poderia continuar a encher colunas de comparações instrutivas, como, por exemplo, a valorização contínua das unidades de exportação coreanas, em contraste com o caso brasileiro, em que o aumento dos volumes mal consegue compensar a queda dos preços unitários. Meu propósito não é, contudo, repisar o óbvio e humilhar nosso orgulho com cotejos deprimorosos.
Quero tão-somente sugerir que, se um país menor que Pernambuco conseguiu tais resultados, deveríamos estudar sua lição de perto. Não necessariamente para tentar copiar o mesmo desempenho, tarefa difícil em relação a um povo que diz precisar trabalhar 24 horas por dia e 7 dias na semana e está ainda debatendo se deve ou não deixar de trabalhar no sábado.
Não sei o que nos reserva essa combinação perversa de ansiedade eleitoral e angustiante deterioração de expectativas econômicas. Suspeito que, seja qual for o desenlace imediato, uma saída duradoura da crise brasileira não poderá dispensar alguns dos ingredientes da fórmula coreana, em dosagem diferente e adaptada às nossas especificidades.

Texto de Rubens Ricupero para a Folha de São Paulo, dia 28 de julho de 2002.

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