sexta-feira, 20 de maio de 2011

Dúvidas de uma criança inocente

Filho: - Papai, o professor de Geografia disse que o trânsito de São Paulo também é conseqüência da precariedade do transporte público, verdade?
Pai: - Sem dúvidas. Não haveria tantos carros nas ruas se o transporte público fosse eficiente. Além disso, poluir-se-ia muito menos.
Filho: - Ele disse, também, que iam construir uma estação de metrô aqui do lado, na Avenida Angélica, mas os moradores não deixaram, por quê?
Pai: - Particularmente, aqui em Higienópolis, não há necessidade de uma estação de metrô.
Filho: - Não facilitaria o fluxo de carros?
Pai: - Sim, mas também aumentaria a quantidade de pessoas estranhas no bairro, além das ocorrências indesejáveis e dos camelódromos.
Filho: - Quem são as pessoas estranhas?
Pai: - As pessoas dos outros bairros.
Filho: - É por isso que os moradores do bairro da titia não me deixam jogar bola quando a visitamos?
Pai: - Claro que não, filho.
Filho: - A titia é estranha?
Pai: - Óbvio que não.
Filho: - E por que as pessoas que moram em outros bairros são estranhas, com exceção da titia?
Pai: - É uma longa história... Esquece isso, não me expressei muito bem.
Filho: - Conta pra mim, papai.
Pai: - Agora não dá, estou indo para a Sinagoga.
Filho: - Ok, mas antes de o senhor ir, me promete uma coisa?
Pai: - Diga meu filho.
Filho: - Um dia o senhor me leva para andar de metrô?
Pai: - Sim, um dia.


Texto do Blog.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

O medo do Diabo

Durante um vôo para as ilhas Cayman (um arquipélago paradisíaco), abordo do seu jatinho mais luxuoso, Bigode apreciava as fortes palavras de Nicolau Maquiavel, ao passo que Laranja, seu amigo de negócios, tirava um cochilo. A viagem parecia tranqüila, até uma forte turbulência tomar conta da aeronave. Eis que o Diabo aparece e logo se apresenta:
- Sou o Diabo, o dono do inferno. Vim das cinzas para derrubar o avião e matar todos vocês!
Enfurecido, Bigode fechou “O Príncipe”, levantou-se lentamente e caminhou em direção ao anjo decaído, dando início ao melhor diálogo de todos os tempos:
Bigode: - Sei exatamente quem você é. E você, sabe quem eu sou?
Diabo: - Sim, você é o Bigode.
Bigode: - Bigode é o meu nome, sou o dono do Baronil.
Diabo: - Dono do Baronil, desde quando um país tem dono?
Bigode: - Pode não ter um dono na teoria, mas tem um dono na prática.
Diabo: - Como assim, você bebeu?
Bigode: - Só bebo as águas da fonte do Ribeirão, do rio Amapá Grande e do lago Paranoá. Bebida alcoólica, raramente.
Diabo: - Então porque te auto-intitulas “dono do Baronil”? Explique-se logo senão queimar-te-ei ao poucos para que sofras antes de morrer.
Bigode: - Os amigos que fiz durante a ditadura, além da minha forte influência na esfera macumbeira, ajudaram-me a chegar, sem grandes dificuldades, à presidência desse país. Desde então, perpetuo no poder.
Diabo: - Bigode, nem todos que moram no inferno são desatualizados. Sou assinante da revista “Olhe” e sei muito bem que você não perpetua no poder, até porque quem manda no Baronil não tem testículos. Você quer enganar o Diabo?
Bigode: - Independente de ter testículos ou não, sem a minha ajuda, ela não chegaria aonde chegou. Da mesma forma que seu antecessor (que tem testículos e não tem dedo), também não.
Diabo: Ummm... Entendi, só por isso?
Bigode: - Claro que não. Controlo os governadores de vários Estados do Baronil, como se fossem marionetes. Diabo, a revista que você lê não mostra tudo. Para você ter idéia, nomeei Bigodinha como governadora de um Estado logo após sua derrota nas urnas.
Diabo: - Sua filha?
Bigode: - Exatamente. Acertou uma hein, Diabo?
Diabo: - Há-há-há! Você não teme nem a mim, não é?
Bigode: - Claro que não. Tenho amigos supremos, tão fortes que usam capas pretas semelhantes à do Batman.
Diabo: - Nossa! Sério? Conte-me mais.
Bigode: Sente-se, fique à vontade. Aceita um chá?
Diabo: - Só se for de cogumelo.
Bigode: - De cogumelo não tem, um café?
Diabo: - Estou bem assim.
Diabo: - Bigode, pelo visto, tenho muito que aprender com você.
Bigode: - Prefiro que me chame de presidente.
Diabo: - Desculpa presidente. É que estou ansioso. O que mais vossa excelência pode fazer?
Bigode: - Posso fazer no Baronil tudo o que Deus pode fazer no céu.
Diabo: - Deus? Não me fale desse cara, presidente, por favor.
Bigode: - Ok.
Diabo: - Estamos quase chegando às ilhas Cayman, antes do avião pousar terei que retornar ao inferno. Conte-me um pouco mais, dê-me algumas dicas de suas malandragens, ensina-me a ser um Marlon Brando da Sicília.
Bigode: - Bem, estou na politicagem há anos. Conheço os podres de muita gente importante e sei usá-los muito bem. Tenho uma fortuna inimaginável, mas para que não desconfiem, costumo passar parte dela para o nome de terceiros. Para você ter uma idéia, Laranja, esse indivíduo que está ressonando à sua frente, é dono de várias coisas que, na verdade, são minhas, entende?
Diabo: - Sim, claro. O que mais Vossa Excelência tem?
Bigode: - Uma ilha inteira só para mim, alguns bancos, universidades, ministérios...
Diabo: - Sério?
Bigode: - Não tenho porque mentir, nem título de eleitor você tem.
Diabo: - E se tivesse?
Bigode: - Passar-me-ia por santo, indubitavelmente.
Diabo: - Santo? Assim vossa excelência não ganharia meu voto.
Bigode: - Interessante, não tinha pensado nisso. Com exceção de alguns bajuladores, você seria o único a votar em mim pelo que sou.
Diabo: - Realmente...
Bigode: - Aqui vai um conselho, meu caro, quem se importa com os outros não chega a lugar nenhum. Por mais que você odeie as pessoas, mostre o contrário, sobretudo às vésperas das eleições. Além disso, o principal, nunca perca o foco.
Diabo: - Que foco?
Bigode: - O dinheiro e o poder. Almeje sempre isso.
Diabo: - Vossa excelência seria capaz de fazer tudo para não perder o foco?
Bigode: - Claro. Faço isso há mais de quarenta anos e continuarei fazendo até os últimos dias da minha vida.
Diabo: - Então ainda o fará por muitos e muitos anos, pode ter certeza.
Bigode: - Infelizmente não. Estou ficando velho, minha vida está chegando ao fim.
Diabo: - Vira essa boca pra lá, pelo amor de Deus!
Bigode: - Deus?
Diabo: - Sim. Vossa Excelência é uma ótima pessoa, irá para o céu. Deus precisa de Vossa Excelência, amém!
Bigode: - O que está acontecendo, Diabo? Pensei que fôssemos amigos. Você não me quer no inferno?
Diabo: - Não é isso presidente, juro que não é isso.
Bigode: - Você não ouviu direito tudo que falei até aqui, como ousas falar em céu?
Diabo: - Desculpa presidente, preciso ir. Foi um prazer falar com Vossa Excelência.
O Diabo desapareceu em um piscar de olhos, mas antes, sussurrou baixinho para sis mesmo:
- Tô ferrado! Quando esse velho morrer, perderei o emprego.

Texto do Blog.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Fiuk, o Newton brasileiro?

Dentre os inúmeros problemas da sociedade brasileira, nenhum me deixa tão revoltado quanto o preconceito que passam alguns “artistas”, sobretudo os que estão começando a carreira. Muitos são julgados pelo excesso de gírias, pelo tamanho da gola de suas camisetas e até mesmo pela cor de suas calças. Se você é um desses que prioriza a forma ao conteúdo, leia essa notícia do globo.com do dia 13/04/2011 e quebre a cara:
Título: Fiuk garante ter visto um disco voador
Fiuk não esconde de ninguém e garante ter visto um disco voador em entrevista a revista “RG Teen”. E, segundo ele, o pai, Fábio Jr., é testemunha: “Era uma nave que fazia um S no céu. O olho nem consegue ver o que existe no universo todo. Conversei muito com meu pai e li dois livros".
Viu? Há anos o mundo questiona a existência de seres de outros planetas, mas em frações de segundos o jovem Fiuk comprova, sob a testemunha de seu pai – ou seja, mata a cobra e mostra o pau-, que eles existem. Todavia, as contribuições de Fiuk não param por ai. Ao enfatizar que a trajetória da nave seguia em “S”, Fiuk revoluciona a Física-Dinâmica. Não descarto a hipótese de que nossos descendentes passem a estudar – em um futuro próximo -, junto com os movimentos retilíneos uniformes e uniformemente variados, o S de Fiuk. Será Fiuk o Newton brasileiro?
A única coisa que ficou vaga e mal explicada na reportagem foram os dois livros lidos por Fiuk. Será que ele os leu enquanto falava com seu pai, será que ele leu dois livros sobre disco voadores ou será que ele leu dois livros em toda a sua vida?

Texto do Blog.

Aparelho judiciário e economia no mundo globalizado: embates indeléveis

Não se sabe de outra época na história em que as fronteiras entre os países encontram-se tão tênues. Com efeito, tal fenômeno social – a que os sociólogos têm chamado de globalização – teve seu advento com a ascensão da burguesia durante a Revolução Industrial no século XVIII, e – cada vez mais – vem se cristalizando nos liames da vida social, mormente no que diz respeito àqueles que envolvem as relações econômicas, as quais – como se sabe – estão intrinsecamente vinculadas à área jurídica.
Assim sendo, a análise econômica do Direito, cuja proposta está pautada igualmente nas mudanças geradas pelo fenômeno da globalização, propõe-se não apenas vislumbrar o mero diálogo entre o Direito e a Economia, mas também aferir o modo como judiciário tem se comportado frente ao cumprimento dos contratos. Pelo menos foi o que tencionou ousadamente o professor Armando Castelar Pinheiro, em seu meritório artigo Direito e Economia num mundo globalizado: cooperação ou confronto?
Valendo-se notoriamente de argumentos que cingem em torno de uma abordagem macroeconômica, o economista discorre à exaustão acerca da competência do aparelho judicante, ressaltando – em alguns momentos do texto – que se fosse possível o seu bom funcionamento, isto influenciaria sobremaneira no desenvolvimento econômico, principalmente nas relações exteriores de mercado. Além disso, percebe-se, com efeito, que o autor preocupa-se, sobretudo com os efeitos do mau funcionamento dos tribunais, valendo-se de análises de caráter empírico para corroborar seus argumentos.
Note-se também que o matemático põe em risco a sua análise logo na introdução, ao parecer tendencioso, ou seja, protelando a sua imparcialidade frente ao estudo, quando suscita – através da citação de um teórico norte-americano (Stigler) - que o grande problema dos operadores do Direito é que eles se preocupam mais com a justiça, ao passo que os economistas primam pela eficiência. Ora, nessa linha de raciocínio, e por corolário, poder-se-ia depreender que o autor está sugerindo uma proposta maquiavélica, ou seja, qualquer meio é justificável para que se cumpra o prazo dos contratos, evitando assim o problema mais evidente do judiciário - embora não sendo o mais importante -, qual seja, a morosidade na resolução de processos. No entanto, tal ponto é retomado nas “Observações finais” do artigo, onde o economista discute várias relações, sopesando hipóteses em que se percebem problemas tanto do ponto de vista dos economistas quanto dos operadores do Direito, dirimindo assim alguma possibilidade tendenciosa.
Ademais, o autor expõe claramente os indicadores com os quais vai analisar os tribunais, asseverando que “Definições genéricas, como a que estabelece ‘que um bom judiciário é aquele que assegura que a justiça social seja acessível e aplicada a todos, (...),’ embora capturem a essência do problema, são de difícil utilização (PINHEIRO, 2003, p.4)”. Assim sendo, vale dizer que se o ponto principal da instituição judiciária é o processo decisório, logo é esse fator que deve ser colocado como preocupação preponderante, visando – destarte – à qualidade e não a quantidade do sistema, ainda que as duas esferas estejam imbricadas. E o que mais torna patente a natureza qualitativa do judiciário é a credibilidade dada pela população, ao procurá-lo.
Ora, vê-se claramente que essa dicotomia (quantidade x qualidade) norteará – daqui para frente – toda a apreciação do economista, o que pode suscitar ao leitor mais inexperiente a idéia de raciocínio tautológico. Pelo contrário, note-se que as exemplificações utilizadas para corroborar, ora a morosidade do judiciário, ora a sua imparcialidade são utilizadas num crescendo constante, inviabilizando não só a possível monotonia da leitura, mas tentando abarcar o máximo possível de hipóteses pelas quais o objeto pode ser explicado.
Para tanto, chega a propor o método probabilístico de Pinheiro (2000), a fim de tentar prever o bom ou mau resultado dos litígios, explicando peremptoriamente que “A utilidade esperada de recorrer à justiça depende, positivamente, do valor líquido que se espera receber e, negativamente, da variância desse ganho, que reflete a incerteza quanto a ganhar ou perder a disputa e ao tempo até que uma decisão seja tomada (2003, p.6)”. Desta forma, até o próprio conceito de justiça, o qual possui um caráter idiossincrático, é quantificado pelo pensamento teoremático do professor, ao asseverar que “Um sistema de resolução de conflitos caracteriza-se como justo quando a probabilidade de vitória é próxima a 1 para o lado certo e a 0 para o lado errado (2003, p. 7)”.
Ora, o grande problema do autor é que ele não consegue se desprender de sua formação positivista, o que o leva a analisar a noção de eqüidade, sem se valer de aspectos filosóficos. Embora reconheça nas últimas páginas do artigo que os juízes se defrontam diariamente com casos que exigem um alto grau de sensibilidade, ele ressalta que a parcialidade do magistrado, bem como a sua não-neutralidade política (esse sim o grande problema do aparelho judiciário) é causada pela intensa proteção que a justiça oferece à classe inadimplente (inquilinos, devedores), ratificando que os bancos adotarão medidas paralelas como forma de se protegerem do mau funcionamento do judiciário, como – por exemplo – a maximização do spread. Entende-se, contudo, que o magistrado tenta estabelecer – na verdade - a chamada justiça distributiva, cuja visão é a de que se devem tratar os desiguais de forma desigual, como falava Aristóteles.
No tocante aos dados empíricos trazidos pelo autor, vê-se um alto grau de cientificismo com valores extremamente criteriosos, cujas perguntas possuem um alto grau de provocação, mormente aquelas que são direcionadas aos magistrados, como – por exemplo – uma que aquilata a freqüência de politização nas decisões dos juízes, e em que ramos do Direito essa prática é recorrente. Assim, o resultado da pesquisa não foge ao esperado, pois a sinceridade dos juízes é evidente. As causas em que predominam a “politização” são justamente aquelas que estão vinculadas ao ramo do Direito público, quais sejam, Regulação de Serviços Públicos (32.5%), Previdência Social (31,3%) e Meio Ambiente (28,2%), o que comprova que a situação não é catastrófica como parece.
Alusões ao fornecimento de mais recursos ao judiciário, bem como à chamada súmula vinculante são feitas no final do artigo, como forma de combater a falta de celeridade do judiciário, tendo em vista que muitos agentes econômicos utilizam de má fé o sistema judicial e seu moroso processo de decisão, o que caracteriza não só a relação dúbia entre os tribunais e estes agentes, mas também a complexidade do diálogo entre a Economia e a seara jurídica.






Texto do Blog.

Referências:




PINHEIRO, Castelar Armando. Direito e Economia num mundo globalizado: cooperação ou confronto. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Rio de Janeiro, julho de 2003.

A consciência democrática do ensino em "Pedagogia da Autonomia", de Paulo Freire

Desde o final da década de 80, as discussões acerca da formação de professores que estão em atividade - ou de alunos universitários que almejam a uma vaga como docentes – têm sido constantes. Pedagogos, filósofos e uma seleta plêiade de intelectuais reúnem-se em congressos, fóruns, palestras e Tutti quanti no intuito de aferir a postura do educador em sala de aula, na tentativa de otimizar o processo ensino-aprendizagem.Acredita-se que a ineficiência dos resultados não esteja no uso do vasto arsenal teórico utilizado nas contendas, pois como se sabe os problemas educacionais envolvem não só o ambiente escolar, mas também toda a sociedade. Logo, pode-se notar a complexidade do assunto, que é ratificada pela vasta herança epistemológica deixada por pensadores desde a época de Sócrates. A improficuidade reside no fato de privilegiar sobremaneira as questões gnosiológicas, protelando os dois principais agentes de mudança social: o sonho e a esperança.Tratando o assunto de maneira científica - com uma linguagem filosófica, acessível, beirando a poética-, Paulo Freire elabora uma espécie de arquétipo de conduta democrática, em “Pedagogia da Autonomia”.Em todo o compêndio, nota-se a veia progressista de um educador que tencionou não apenas ensinar a ensinar, mas asseverar o amor pela profissão; prova cabal disso é o modo como a maioria dos capítulos e subcapítulos está iniciado com o próprio verbo “ensinar” no infinitivo, dando a idéia de um legado ou “mandamentos” deixados pelo autor.No tocante à temática, é toda ela perpassada por um sentimento democrático da prática educativa. Freire alerta para o fato de que a formação do discípulo se dá de forma concomitante com a do mestre, ou seja, trata-se da conscientização do caráter interacional da relação professor-aluno, desmitificando inexoravelmente a visão segundo a qual apenas o educando aprende em sala.No entanto, logo se abre uma lacuna: como conceber uma aprendizagem libertária - à luz de uma relação dialógica com o educando - se o próprio educador, mostrando-se prepotente e autoritário, não assumir também o seu papel de aprendiz? Ora, o próprio Paulo afirma que o aluno é capaz de resistir ao ensino bancário, desde que este desperte seu senso crítico ou sua “Curiosidade epistemológica” (FREIRE, 1996, p. 25).É igualmente capital o tom de exortação do autor ao cotejar a metodologia, o senso crítico e a aceitação de riscos por parte do docente em sua atividade. O que se nota nos raciocínios de Freire, além de ensinamentos, é uma crítica corrosiva (e às vezes tácita) à hipocrisia intelectual, à falta de pesquisa e de humildade. Ademais, nota-se que a maioria dos capítulos cinge em torno da discussão da eticidade.A ética freiriana está sob a égide da “consciência do inacabamento”(FREIRE, 1996, P. 50). Conceitos técnicos como “Suporte e “Mundo” são pontos-chave para que o grande filósofo estabeleça o caráter inteligível e consciente que diferencia a atuação no mundo de homens e animais, afirmando que não é possível transgredir a ética sem ter a noção de que ela existe.No que tange à arte de ensinar, Freire também discorre a respeito do saber ouvir. E é nesse argumento que se vê, claramente, a índole libertária do grande pensador. Ele ressalta que escutar o outro é a melhor maneira de aprender suas diferenças. Sendo assim, entende-se que a idéia principal é chamar a atenção para o modo como o professor admoesta o educando; em outras palavras, quer-se dizer o seguinte: aprende-se com o outro escutando-o, e - ao escutá-lo – deve-se criticar seu erro humildemente.O marxismo impera em muitas outras partes. A crítica ao determinismo histórico, bem como a resignação frente às mazelas humanas é delineada com um teor de revolta, causando no leitor um choque com a utilização de relatos tétricos, como por exemplo o de uma família pobre que recolhia pedaços de lixo hospitalar para servir como comida em casa.Obviamente, a intenção também é conscientizar o docente de que a sua profissão jamais pode ser desvinculada da militância e do engajamento, pois “‘Lavar as mãos’ em face da opressão é reforçar o poder do opressor, é optar por ele” (FREIRE, 1996, p.112).Censuras relevantes ao neo-liberalismo, aos aparelhos ideológicos, assim como a própria ideologia em si, estão presentes no final deste livro, o que reitera ainda mais a postura engajada de um homem que não apenas lutou pela melhoria da educação,mas por um mundo melhor, menos fatalista e livre.






Texto do Blog.

Referências:

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 36ª ed. São Paulo: Paz e terra, 1996.(Coleção Leitura).

A Economia para o advogado e o Direito para o economista: relações imprescindíveis

Nos textos que glosam a respeito da Análise Econômica do Direito (doravante AED), muito já se falou acerca da importância que a Economia exerce na área jurídica, mormente se se levar em consideração o tão famigerado empecilho que faz com que – de fato – as duas ciências se coadunem, qual seja, a morosidade do aparelho judiciário, ao dirimir contendas, principalmente aquelas que envolvem contratos. Ademais, recorrente também, embora não menos importante, é o problema da parcialidade desse mesmo sistema judicante, que se encontra sob a égide do que os economistas do Direito vêm chamando de “politização” (PINHEIRO E SADDI,2003, p. 31) do magistrado. Por outro lado, percebe-se algo diferente no primeiro capítulo da obra Direito, Economia e Mercados, dos eminentes autores Armando Castelar Pinheiro e Jairo Saddi. Com efeito, não obstante a formação de ambos os autores, bem como o conhecimento profícuo nas duas áreas do saber, nota-se dessa vez uma preocupação mais incisiva em esclarecer aos economistas os principais conceitos e princípios que cingem em torno da ciência do Direito. E, para tanto, eles se valem de um recurso que os filósofos da linguagem (em geral os lingüistas) denominam hipertexto. Em outras palavras, para corroborar seus argumentos e explanações, eles utilizam fragmentos das obras de autores da área jurídica, como – por exemplo – Tércio Sampaio. Sem dúvida, o caráter didático é patente, quando os economistas iniciam a diferenciação entre os dois grandes sistemas judiciais da civilização ocidental, a saber: o Commom Law e o sistema do Direito Romano. No tocante ao primeiro, inicia-se a lição à luz do conceito da expressão Commom Law que “pode variar muito em relação ao uso e ao contexto próprio em que está inserida, mas em geral quer dizer que foram derivados da grande família do Direito Britânico (PINHEIRO E SADDI, 2003, p.22). A partir daí, surgirão explicações históricas, a fim de diferenciar- desta vez - o Commom Law do Direito anglo-saxônico. Como mesmo assevera os escritores, a relação é tênue, pois o anglo-saxônico deriva dos costumes locais das tribos que pertenciam aos povos rudimentares da nação inglesa, tratando-se de um direito das tribos da Inglaterra antes da chegada do povo normando, no ano de 1066. Já o Commom Law origina-se de um caráter mais escrito e jurisprudencial, muito depois da vinda daquele povo. Por isso, diz-se que é “equivocado afirmar que a Commom Law é o Direito anglo-saxônico, apesar de influenciá-lo” (IDEM, 2003, p. 22). Assim sendo, feito isto, agora é possível começar finalmente a elucidar a cisão clássica entre o sistema jurídico norte americano e o romano, a qual não é apenas delimitada por um ser escrito em leis e o outro não, mas sim pela maneira processual que os magistrados utilizam para resolver os casos litigiosos. Portanto, como expõem os autores, o magistrado do Commom Law é compelido a seguir os precedentes da corte, ao fundamentar-se na resolução de um caso atual; ao passo que o do Direito romano possui uma maior liberdade de interpretação, caso o ordenamento jurídico apresente problemas no tocante à sua completitude. Como se vê, Armando e Jairo apresentam conhecimentos específicos da ciência jurídica, o que não só angaria credibilidade ao texto, na comunidade científica, mas também viabiliza aos estudantes que estão iniciando o curso de Direito um maior acesso a conceitos que muita das vezes se tornam herméticos, devido à linguagem rebuscada do docente ou do texto por ele indicado. Como exemplo, cita-se o conceito do princípio do contraditório, o qual o autor conceitua, dizendo que “é o princípio de que, aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados, em geral, é assegurada ‘a ampla defesa’, com os meios e recursos a ela inerentes” (IDEM, 2003, p.26). É enfatizado, outrossim, os princípios fundamentais da Constituição, sendo todos eles – como já se falou - discorridos de forma simples, sem utilizar a terminologia jurídica específica, como no caso do princípio da Isonomia, que é o da igualdade de todos perante a lei; porém, o autor preferiu explicar de forma sucinta, dizendo que “A igualdade das partes advém da garantia constitucional de que todo cidadão goza – a igualdade de tratamento perante a lei” ( IDEM,2003, p.29). Ademais, outros princípios importantes são citados, como - por exemplo – o da supremacia, da legalidade, da finalidade. No que concerne ao princípio da razoabilidade e o da proporcionalidade, nota-se uma abordagem mais minuciosa, por tratar-se de princípios que necessitam de uma atenção mais acurada, dado o seu caráter abstrato. O da proporcionalidade pode ser visto como controle de constitucionalidade, uma vez que visa – à luz de três subprincípios, a saber: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito – à compatibilidade e a harmonia entre princípios constitucionais, e para isso tem-se a hermenêutica constitucional. Já o da razoabilidade é “a existência de sincronismo entre o que é colocado na norma e o que dela é realizado na prática vivida da política social” (IDEM, 2003, p.30). Alusões à multiplicidade semântica da palavra justiça são feitas neste texto, com ênfase precípua nos filósofos gregos, em especial ao conceito de justiça distributiva proposto por Aristóteles; o que confirma o conhecimento enciclopédico dos autores.














Texto do Blog.

Referências:

PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Direito, Economia e Mercados. Elsevier, 2ª tiragem, Rio de Janeiro, julho de 2003.

Direito e Economia: diálogos e duelos

Discorrer acerca do caráter epistemológico de algum objeto sem levar em consideração o processo interdisciplinar tornou-se algo anacrônico nos meios acadêmicos. Atualmente, tem-se fomentado sobremaneira à adoção de metodologias que visem a uma análise dos fenômenos sob uma ótica ampla, ou seja, levando em consideração as tênues relações entre os diversos ramos do conhecimento, na tentativa de quebrar a concepção segregada de análise científica, a qual fora iniciada pelo sistema cartesiano, e que de nada contribui para o alcance da gênese de um problema, mormente se ele pertencer ao ramo das ciências humanas. Com efeito, no tocante à seara jurídica, a necessidade de tal processo torna-se mais evidente, visto que tal ciência vale-se de fenômenos puramente sociais, o que acentua ainda mais a complexidade de seu estudo, necessitando – por vezes – de um conhecimento enciclopédico por parte do operador do Direito, no intuito de dirimir conflitos ou mesmo no processo decisório. Sendo assim, entre esses vários conhecimentos propedêuticos, poder-se-ia incluir também o da ciência econômica, cuja relação com o Direito tem se dado, ora de forma harmônica, ora de forma tempestiva, o que gerou até mesmo uma vertente de caráter gnosiológico, chamada Análise Econômica do Direito (AED), como bem acentua brilhantemente o eminente jurista e professor da UNB Daniel Christianini Nery em seu meritório artigo Quando o Direito encontra a economia. O texto – como próprio ressalta o autor – não pretende esgotar os infindáveis casos em que as duas ciências se consubstanciam, embora ele assevere a credibilidade que esse nível de análise tem tido, hodiernamente, no âmbito jurídico, ressaltando que alguns dispositivos do código civil salvaguardam as relações de contratos, bem como algumas legislações especiais, como – por exemplo - a Lei de defesa da concorrência (Lei nº 8.884/94). No entanto, percebe-se o tom cáustico – beirando o irônico – do autor; o que deixa bem claro que dará ênfase aos aspectos negativos que permeiam a relação entre os dois saberes, afirmando que “esta história não pode ser contada apenas pelos bons encontros entre as duas ciências! Talvez mais importante seja observar os desencontros, as incompatibilidades entre Direito e economia”. Com efeito, o que será feito daí para frente constitui-se como um arsenal de críticas, que só não descambam para um caráter panfletário, pois a linguagem solene e técnica inviabilizam essa classificação, bem como a presença notória de conceitos do positivismo jurídico de Hans Kelsen, quando ele diz que “É justamente este embate entre “o dever ser” do mundo jurídico e o “ser” do mundo econômico que muitas vezes permeia nosso dia-a-dia”. No tocante às críticas específicas, o autor as inicia discorrendo sobre um fato tétrico que permeia os litígios entre reclamantes e empresários, qual seja, a falta de celeridade do aparelho judiciário, ao agir discricionariamente sobre os processos. Ademais, ressalta o professor que a morosidade impede o desenvolvimento tecnológico e – até mesmo – a cobrança de impostos. Entretanto, não será ainda nesse aspecto que se perceberá o caráter filosófico da análise do autor, bem como a influência tácita de teóricos que fazem parte da história do pensamento econômico. De fato, nota-se que há uma análise mais acurada – sem dúvida - sobre o “aumento abusivo de preços”, iniciando-a com uma visão do pensamento clássico, sob a égide do liberalismo de Adam Smith: “(...) partimos de um pressuposto, assegurado tanto pelo Direito quanto pela economia, de que o produtor/ empresário possui o direito de aumentar ou diminuir seus preços, bem como o direito de perseguir o lucro”. Ora, percebe-se a preponderância pela ideologia burguesa - o que ainda não vigorava nos argumentos anteriores do autor - uma vez que, à luz de uma retórica argumentativa pautada nos dispositivos jurídicos dos códigos civis português e brasileiro, bem como na legislação especial que protege a livre concorrência - Daniel tentará convencer o leitor de que o aumento dos preços pode ser explicado pela “conquista de mercado resultante de processo natural fundado na maior eficiência de agente econômico em relação a seus competidores”. Assim sendo, doravante, será aferida a análise do caso pela ótica jurídica e econômica concomitantemente. O exemplo dado é: “Se uma empresa aumenta seus preços e os mantém por certo tempo, independentemente de motivos externos, significa que encontrou consumidores dispostos a pagar”; o autor finaliza a exemplificação, ao justificar que não haveria o aumento abusivo, pois estaria entendida aí a lei da oferta e procura, assim como a mera vontade do mercado em adquirir o produto. Ora, o raciocínio neste caso é meramente hedonista e de ordem psicológica, demonstrando marcas evidentes da escola neoclássica - cujos representantes principais foram Alfred Marshall, Pigou e Hawtrey -, visto que os argumentos pressupõem as reações comportamentais do consumidor frente aos aumentos de preços da empresa. Destarte, até mesmo o comportamento dos empresários é vaticinado, quando diz que os altos lucros da suposta clientela “poderiam fazer com que os outros empresários se interessassem por aquele mercado, estabelecendo concorrência e, rapidamente, diminuindo o preço”. A discussão chega ao final, afirmando que a análise do caso possui proporções infindáveis, bem como pontos de vista idiossincráticos. Com efeito, não poderia ser diferente o resultado, partindo-se do diálogo de duas ciências de caráter especulativo, como o são a Economia e o Direito. Por conseguinte, afirma Reale que (2009, p.21): “Há, em suma, uma interação dialética entre o econômico e o jurídico, não sendo possível reduzir essa relação a nexos causais, nem tampouco a uma relação entre forma e conteúdo”. Como se viu, a apreciação crítica das idéias do artigo só corroborou as palavras do grande jurista.

Texto do Blog.

Referências:

NERY, Daniel Christianini. Quando o Direito encontra a Economia. Revista do Autor, 1- jun – 2008.



REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. Editora Saraiva, 2009.

Um Pernambuco que deu certo

Ao ler a coluna de Paulo Nogueira Batista JR., o que sempre faço com prazer e proveito, aprendi que Nelson Rodrigues dizia que, se o Brasil não existisse, o Ceará e o Piauí seriam grandes nações sul-americanas. Para não pensarem que era ironia ou um dos paradoxos hiperbólicos do grande dramaturgo, achei que distrairia talvez os leitores das emoções e sustos das peripécias eleitorais se lhes contasse que acabo de comprovar in loco a veracidade da afirmação.
Estive, de fato, em país que é menor da metade de cada um daqueles Estados nordestinos e mais se aproxima, embora não chegue a tanto, da superfície de Pernambuco. Com pouquíssima coisa a mais que 1% do território brasileiro e sem praticamente nenhum recurso natural, esse país deu o salto gigantesco de uma renda per capitã de 82 dólares, em 1961 – quando o Brasil empossava Jânio Quadros -, para cerca de 9.000 dólares agora – antes da desvalorização da crise de 1997, a renda atingiu 11.385 dólares! Quarenta anos atrás suas exportações totalizavam 41 milhões de dólares, um oitavo apenas das importações, ao passo que as exportações brasileiras eram de 1.405 milhões de dólares, quase 35 vezes mais que as coreanas. No início dos anos 70, os dois países eram comparáveis, com vantagem para o Brasil. Já em 2000, o Pernambuco dos antípodas, pois é de lá que se trata, exportava 172,3 bilhões de dólares, três vezes mais que nós.
Quem chegou até aqui terá adivinhado que falo da Coréia do Sul, pequena grande nação que saiu destroçada da guerra de 1950 a 1953, véspera do período em que JK tentaria fazer com que o Brasil tentasse avançar 50 anos em 5. Em toda a península, as baixas do conflito alcançaram a cifra de 4 milhões, às quais devem ser somadas as da Segunda Guerra Mundial, terminada cinco anos antes. Só a Coréia do Sul teve 1.313.000 baixas, a maioria civis, vendo destruídas 43% das indústrias e 33% das casas.
Como foi possível a esse povo recuperar-se de golpe tão aniquilador e, em menos de duas gerações, alcançar e superar o Brasil, quase cem vezes maior em área, com indústria e exportações, inclusive de manufaturados, muito superiores no início e que nunca sofreu destruição extensa de seus recursos humanos e físicos? Não me arriscarei à explicação exaustiva de fenômeno que mereceu livros volumosos e cuja discussão envereda às vezes pelas trilhas tortuosas da avaliação de fatores intangíveis, como a da ética do confucionismo ou o papel da ajuda americana no âmbito das prioridades da Guerra Fria (não esquecendo, por outro lado, que as despesas militares representaram ônus de 35% do Orçamento e 6% do PIB anuais).
Limito-me, por isso, a objetivo mais simples: identificar três ou quatro causas não-controvertidas e examiná-las com espírito de tirar lições válidas para nós.
A primeira foi o esforço de equalizar relativamente as condições sociais no ponto de partida, mediante a reforma agrária de 1949, que limitou a três hectares a propriedade, de cada família de agricultores. Não estou insinuando que fizéssemos exatamente o mesmo no Brasil, pois são óbvias as diferenças em relação à escassez de terra. Assinalo apenas que, em economia na época dependente do campo em mais de 80%, a reforma equalizou o acesso ao principal fator de produção, conforme se fizera no Japão e em Taiwan, criando as condições de demanda para a industrialização. Conforme observou D.W.Nam, o pai do desenvolvimento do país, a Guerra da Coréia funcionou como nivelador adicional: “Éramos todos igualmente pobres então”. Hoje o problema da desigualdade reapareceu, mas sem nenhuma comparação com a América Latina, onde jamais existiu esforço equalizador similar.
A segunda diferença tem sido a prioridade a uma educação disciplinada e rigorosa, na melhor tradição confuciana. Aqui, a Coréia levava vantagem na largada, uma vez que já dispunha de índice de mais de 90% de alfabetização. Atualmente é um dos raros, mesmo entre os ricos, que universalizaram em quase 100% a educação secundária.
A combinação da primeira e da segunda causa tornou possível à terceira, o rápido desenvolvimento de tecnologia aplicada a produtos de exportação. O lema nacional é alcançar e superar os admirados – mas pouco estimados – japoneses, os antigos colonizadores. Assim como sucedeu no desempenho na Copa, a Coréia passou à frente do Japão em certos itens de tecnologia de informação (36% das exportações contra 27% das nipônicas), em semicondutores, por exemplo, em que os coreanos são os primeiros exportadores de DRAMs desde 1992, o mesmo ocorrendo em computadores LCD de painéis grandes (desde 1998) e em várias áreas de equipamentos de telecomunicações.
Em palestra sobre a competitividade coreana a que assisti, um dos analistas do Instituto de Pesquisas da Samsung definiu da seguinte forma a chave do êxito de seu país: desenvolva sua própria tecnologia, sobretudo concentrando-se em inovação do processo produtivo e em sistema de desenho autônomo. Uma boa ilustração da diferença de abordagem é em relação à indústria automobilística, introduzida no Brasil quase 20 anos antes. Só que nós importamos as transacionais e seus modelos prontos, enquanto os coreanos desenvolveram carros de desenhos próprios, contratando, no começo, “designers” italianos.
A quarta razão do sucesso é a economia voltada para exportações, que correspondem à parcela de entre 35% e 41% do PIB (com as importações, a proporção vai a cerca de 70%). Uma economia como a brasileira não precisaria chegar a tanto, convindo lembrar que, em média, no PIB dos EUA, o peso das exportações é de 11% ou 12%. Não há dúvida, porém, que a capacidade exportadora é que explica por que, após a crise de 1997-1998, a Coréia do Sul zerou, em nove meses, o déficit externo, registra 30 meses consecutivos de saldo comercial desde fevereiro de 2000 e reservas de 110 bilhões de dólares em expansão.
Enquanto isso, no Brasil... Eu poderia continuar a encher colunas de comparações instrutivas, como, por exemplo, a valorização contínua das unidades de exportação coreanas, em contraste com o caso brasileiro, em que o aumento dos volumes mal consegue compensar a queda dos preços unitários. Meu propósito não é, contudo, repisar o óbvio e humilhar nosso orgulho com cotejos deprimorosos.
Quero tão-somente sugerir que, se um país menor que Pernambuco conseguiu tais resultados, deveríamos estudar sua lição de perto. Não necessariamente para tentar copiar o mesmo desempenho, tarefa difícil em relação a um povo que diz precisar trabalhar 24 horas por dia e 7 dias na semana e está ainda debatendo se deve ou não deixar de trabalhar no sábado.
Não sei o que nos reserva essa combinação perversa de ansiedade eleitoral e angustiante deterioração de expectativas econômicas. Suspeito que, seja qual for o desenlace imediato, uma saída duradoura da crise brasileira não poderá dispensar alguns dos ingredientes da fórmula coreana, em dosagem diferente e adaptada às nossas especificidades.

Texto de Rubens Ricupero para a Folha de São Paulo, dia 28 de julho de 2002.

A ética como fator de reflexão na ciência jurídica

Discutir o caráter de eticidade associado às normas jurídicas tornou-se algo comum entre os juristas, de modo que é possível confundir se o advogado está sendo ético por cumprir a norma, ou se esta norma é que não é ética. Do ponto de vista histórico, a ética, como se percebe em sua gênese etimológica (Ethos), estaria relacionada aos aspectos comportamentais que servem não só de modelo para toda sociedade, mas também como princípios valorativos perenes e universais. A partir dessa sumária elucidação de base lingüística, percebe-se o quanto esse aspecto está vinculado às ações das pessoas, sendo quase impossível conceber um ato interativo humano que não seja perpassado por uma discussão envolvendo o conceito de ética. Para ser mais exato, essa contenda permeia a área jurídica tenazmente, de modo que seja difícil algum jusfilósofo, ou mesmo um operador do direito de base positivista, se mostrar infenso a essa deliberação, ainda que a causa já tenha sido solucionada, ou o conflito dirimido. Com efeito, a pergunta que permeia a mente deles deve ser da seguinte forma: será que essa decisão estava pautada na ética? No Direito contemporâneo, falar em ética é pensar não só na garantia do bem comum, mas também na valorização dos direitos humanos. Assim sendo, apoiando-se numa linguagem mais técnica, vê-se a presença da coexistência de duas correntes (Jusnaturalismo e Juspositivismo) que – durante séculos de discussões – habitaram pólos opostos e conflitantes, mormente na idade moderna. Logo, percebe-se que a visão do Direito natural hoje perdeu boa parte (senão completamente) de sua natureza divina, para adotar uma concepção que visa à salvaguarda dos direitos intrínsecos ao ser humano, como - por exemplo - a liberdade, a vida e etc. Desta forma, poder-se-ia perguntar: de que forma a discussão da ética se insere nesse conflito teórico? Ora, para um juiz proferir uma sentença atualmente, ele não se vale apenas do ordenamento jurídico (da norma), mas também de todo um conjunto de valores (éticos?) que influenciam essa tomada de decisão, não sendo à toa que algumas sentenças, as quais surgem da interpretação subjetiva do magistrado, que diferem do ordenamento, se tornam normas, como é o caso das jurisprudências. No entanto, é importante ressaltar que o caráter abstrato da norma jurídica invalida sobremaneira a discussão sobre a ética, pois o próprio Direito define-se como “(...) a ordenação heterônoma e coercível da conduta humana” (REALE, 2009, p.49); ou seja, há uma relação de obrigação que coage os indivíduos no tocante ao cumprimento da lei, não importando se esta é justa ou está sob a égide da eticidade. Como se vê, ética e ciência jurídica se colocam, ora em harmonia, ora em caráter dicotômico, sendo tarefa precípua do advogado compreender – à luz de um processo analítico – sua possível relação, sem procrastinar – obviamente – o cumprimento da norma e ordenamento vigentes.

Texto do Blog.



Referências:

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. Editora Saraiva, São Paulo, 2009.

Lixo ou produção de alimentos?

A sociedade está hoje afundando em lixo. Só no Estado de São Paulo são produzidos 30 milhões de toneladas de lixo por dia. Quem é responsável por tanto lixo?
Enquanto pessoas passam fome, os empresários desperdiçam recursos produzindo mercadorias que são programadas para quebrar em curto tempo. Além disso, a propaganda cria a ilusão de que precisamos consumir sempre o produto mais moderno, de alta tecnologia. Assim, somos incentivados pelos capitalistas a jogar fora produtos que quebram rápido ou que ficam “fora de moda”. Isso gera uma quantidade enorme de lixo que os empresários despejam na sociedade.
Nas cidades de Limeira e Americana os prefeitos estão mais preocupados com o lucro e o lixo dos empresários do que com o bem-estar dos trabalhadores. Por isso, invadem áreas para produzir alimentos com LIXÕES.
Por outro lado, o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra)defende a utilização dessas áreas para a Reforma Agrária. Os trabalhadores rurais sem-terra lutam para produzir alimentos baratos e saudáveis para si e para a população.
Você come lixo? Nós queremos produzir alimentos.




Boletim Informativo do Movimento dos Sem Terra (MST) - Regional Campinas - 3 Edição - Agosto de 2009.













Financeirização e riqueza fictícia

O enviado especial de “El País” ao Fórum Mundial de Davos encerrou seu trabalho com uma reportagem com o título “Davos assume a decadência do capitalismo à americana”. Depois de tantos anos de exuberância especulativa e arrogância ideológica, está se tornando claro agora para todos quão perversa foi para os Estados Unidos a transformação das finanças em financeirização e a do liberalismo em neoliberalismo. Depois dos “30 anos gloriosos do capitalismo” (1945-75), o capitalismo regrediu: passou a crescer menos, as crises financeiras tornaram-se mais freqüentes, e a desigualdade aumentou, privilegiando os 2% mais ricos da população.Mas hoje, nada de grandes análises, e sim mais uma aula para Maria e para João. Este me pergunta: “Essa palavra financeirização que cada vez um número maior de pessoas usa – é a mesma coisa que finanças?”. Não é. A atividade financeira é necessária; a financeirização, sua distorção. Principalmente os bancos e as Bolsas de Valores têm um papel fundamental em qualquer sistema econômico. É por meio deles que os poupadores transferem suas poupanças aos empresários que realizam investimentos e promovem, assim, o desenvolvimento econômico. É por meio dos bancos e dos seus cheques e cartões de crédito que fazemos nossos pagamentos. O mercado só pode funcionar bem e a economia só se torna eficiente quando os bancos e as Bolsas realizam bem sua tarefa de financiar a produção.Já a financeirização é uma palavra cada vez mais usada para indicar o sistema financeiro está deixando de cumprir a sua missão e passa a assumir um papel principalmente especulativo. Mais precisamente, a financeirização é a distorção do sistema financeiro que resultou da desregulação neoliberal do sistema financeiro. Tal desregulação tornou possíveis “inovações financeiras” que, em vez de facilitarem o financiamento da produção, produziram para seus inventores – os financistas profissionais – grandes comissões e bônus, e, para os rentistas, riqueza financeira fictícia.“Então todas as inovações financeiras foram más?”, pergunta João. Nem todas, mas muitas delas. Aparentemente elas pretendem dar mais segurança às finanças, mas afinal são uma forma que os financistas inventaram para tornar os rendimentos dos rentistas muito mais elevados que a taxa de lucro normal das empresas e a correspondente taxa de juros e, assim, justificar suas comissões. São mecanismos que aproveitam a desinformação e a insegurança dos investidores para realizar ganhos muito maiores do que o crescimento do PIB.“Mas quem é que perde nesse processo? Se a riqueza está aumentando, parece que todos ganham”, diz-me Maria. Durante algum tempo, todos parecem ganhar. É a euforia do boom. Mas, como a riqueza que está sendo criada é fictícia (o valor das ações nos Estados Unidos aumentaram cerca de quatro vezes mais do que o PIB desde 1980), de repente a confiança desaparece e os preços dos ativos (ações, imóveis) caem verticalmente. É a crise destruindo a riqueza fictícia que havia sido criada pela financeirização – pelas inovações financeiras e a especulação.“Mas, afinal, parece que a crise destrói apenas a riqueza fictícia”, observa João. Tomara fosse assim! Na verdade leva também boas empresas à falência, cria desemprego, diminui o PIB, destrói, portanto, a riqueza real. O pior, porém, é que provoca insegurança e sofrimento desnecessário para as pessoas.

Texto de Luiz Carlos Bresser-Pereira para a Folha de São Paulo (23 de fevereiro de 2009).

O Fator Deus

Algures na Índia. Uma fila de peças de artilharia em posição. Atado à boca de cada uma delas há um homem. No primeiro plano da fotografia um oficial britânico ergue a espada e vai dar ordem de fogo. Não dispomos de imagens do efeito dos disparos, mas até a mais obtusa das imaginações poderá "ver" cabeças e troncos dispersos pelo campo de tiro, restos sanguinolentos, vísceras, membros amputados. Os homens eram rebeldes. Algures em Angola. Dois soldados portugueses levantam pelos braços um negro que talvez não esteja morto, outro soldado empunha um machete e prepara-se para lhe separar a cabeça do corpo. Esta é a primeira fotografia. Na segunda, desta vez há uma segunda fotografia, a cabeça já foi cortada, está espetada num pau, e os soldados riem. O negro era um guerrilheiro. Algures em Israel. Enquanto alguns soldados israelitas imobilizam um palestino, outro militar parte-lhe à martelada os ossos da mão direita. O palestino tinha atirado pedras.
Estados Unidos da América do Norte, cidade de Nova York. Dois aviões comerciais norte-americanos, sequestrados por terroristas relacionados com o integrismo islâmico, lançam-se contra as torres do World Trade Center e deitam-nas abaixo. Pelo mesmo processo um terceiro avião causa danos enormes no edifício do Pentágono, sede do poder bélico dos States. Os mortos, soterrados nos escombros, reduzidos a migalhas, volatilizados, contam-se por milhares.
As fotografias da Índia, de Angola e de Israel atiram-nos com o horror à cara, as vítimas são-nos mostradas no próprio instante da tortura, da agônica expectativa, da morte ignóbil. Em Nova York tudo pareceu irreal ao princípio, episódio repetido e sem novidade de mais uma catástrofe cinematográfica, realmente empolgante pelo grau de ilusão conseguido pelo engenheiro de efeitos especiais, mas limpo de estertores, de jorros de sangue, de carnes esmagadas, de ossos triturados, de merda. O horror, agachado como um animal imundo, esperou que saíssemos da estupefação para nos saltar à garganta.
O horror disse pela primeira vez "aqui estou" quando aquelas pessoas saltaram para o vazio como se tivessem acabado de escolher uma morte que fosse sua. Agora o horror aparecerá a cada instante ao remover-se uma pedra, um pedaço de parede, uma chapa de alumínio retorcida, e será uma cabeça irreconhecível, um braço, uma perna, um abdômen desfeito, um tórax espalmado. Mas até mesmo isto é repetitivo e monótono, de certo modo já conhecido pelas imagens que nos chegaram daquele Ruanda-de-um-milhão-de-mortos, daquele Vietnã cozido a napalme, daquelas execuções em estádios cheios de gente, daqueles linchamentos e espancamentos daqueles soldados iraquianos sepultados vivos debaixo de toneladas de areia, daquelas bombas atômicas que arrasaram e calcinaram Hiroshima e Nagasaki, daqueles crematórios nazistas a vomitar cinzas, daqueles caminhões a despejar cadáveres como se de lixo se tratasse. De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta aos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus.
Já foi dito que as religiões, todas elas, sem exceção, nunca serviram para aproximar e congraçar os homens, que, pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da miserável história humana. Ao menos em sinal de respeito pela vida, deveríamos ter a coragem de proclamar em todas as circunstâncias esta verdade evidente e demonstrável, mas a maioria dos crentes de qualquer religião não só fingem ignorá-lo, como se levantam iracundos e intolerantes contra aqueles para quem Deus não é mais que um nome, nada mais que um nome, o nome que, por medo de morrer, lhe pusemos um dia e que viria a travar-nos o passo para uma humanização real. Em troca prometeram-nos paraísos e ameaçaram-nos com infernos, tão falsos uns como outros, insultos descarados a uma inteligência e a um sentido comum que tanto trabalho nos deram a criar. Disse Nietzsche que tudo seria permitido se Deus não existisse, e eu respondo que precisamente por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior, principalmente o mais horrendo e cruel.
Durante séculos a Inquisição foi, ela também, como hoje os talebanes, uma organização terrorista que se dedicou a interpretar perversamente textos sagrados que deveriam merecer o respeito de quem neles dizia crer, um monstruoso conúbio pactuado entre a religião e o Estado contra a liberdade de consciência e contra o mais humano dos direitos: o direito a dizer não, o direito à heresia, o direito a escolher outra coisa, que isso só a palavra heresia significa.
E, contudo, Deus está inocente. Inocente como algo que não existe, que não existiu nem existirá nunca, inocente de haver criado um universo inteiro para colocar nele seres capazes de cometer os maiores crimes para logo virem justificar-se dizendo que são celebrações do seu poder e da sua glória, enquanto os mortos se vão acumulando, estes das torres gêmeas de Nova York, e todos os outros que, em nome de um Deus tornado assassino pela vontade e pela ação dos homens, cobriram e teimam em cobrir de terror e sangue as páginas da história. Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou, mas o "fator Deus", esse, está presente na vida como se efetivamente fosse o dono e o senhor dela. Não é um deus, mas o "fator Deus" o que se exibe nas notas de dólar e se mostra nos cartazes que pedem para a América (a dos Estados Unidos, não a outra...) a bênção divina. E foi o "fator Deus" em que o deus islâmico se transformou, que atirou contra as torres do World Trade Center os aviões da revolta contra os desprezos e da vingança contra as humilhações. Dir-se-á que um deus andou a semear ventos e que outro deus responde agora com tempestades. É possível, é mesmo certo. Mas não foram eles, pobres deuses sem culpa, foi o "fator Deus", esse que é terrivelmente igual em todos os seres humanos onde quer que estejam e seja qual for a religião que professem, esse que tem intoxicado o pensamento e aberto as portas às intolerâncias mais sórdidas, esse que não respeita senão aquilo em que manda crer, esse que depois de presumir ter feito da besta um homem acabou por fazer do homem uma besta.
Ao leitor crente (de qualquer crença...) que tenha conseguido suportar a repugnância que estas palavras provavelmente lhe inspiraram, não peço que se passe ao ateísmo de quem as escreveu. Simplesmente lhe rogo que compreenda, pelo sentimento de não poder ser pela razão, que, se há Deus, há só um Deus, e que, na sua relação com ele, o que menos importa é o nome que lhe ensinaram a dar. E que desconfie do "fator Deus". Não faltam ao espírito humano inimigos, mas esse é um dos mais pertinazes e corrosivos. Como ficou demonstrado e desgraçadamente continuará a demonstrar-se.

Texto de José Saramago, prêmio Nobel de Literatura.

A pobreza da riqueza


Em nenhum outro país os ricos demonstram mais ostentação que no Brasil. Apesar disso, os brasileiros ricos são pobres. São pobres porque compram sofisticados automóveis importados, com todos os exagerados equipamentos da modernidade, mas ficam horas engarrafados ao lado dos ônibus de subúrbio. E, às vezes, são assaltados, seqüestrados ou mortos nos sinais de trânsito. Presenteiam belos carros a seus filhos e não voltam a dormir tranqüilos enquanto eles não chegam em casa. Pagam fortunas para construir modernas mansões, desenhadas por arquitetos de renome, e são obrigados a escondê-las atrás de muralhas, como se vivessem nos tempos dos castelos medievais, dependendo de guardas que se revezam em turnos.

Os ricos brasileiros usufruem privadamente tudo o que a riqueza lhes oferece, mas vivem encalacrados na pobreza social. Na sexta-feira, saem de noite para jantar em restaurantes tão caros que os ricos da Europa não conseguiriam freqüentar, mas perdem o apetite diante da pobreza que ali por perto arregala os olhos pedindo um pouco de pão; ou são obrigados a restaurantes fechados, cercados e protegidos por policiais privados. Quando terminam de comer escondidos, são obrigados a tomar o carro à porta, trazido por um manobrista, sem o prazer de caminhar pela rua, ir a um cinema ou teatro, depois continuar até um bar para conversar sobre o que viram. Mesmo assim, não é raro que o pobre rico seja assaltado antes de terminar o jantar, ou depois, na estrada a caminho de casa. Felizmente isso nem sempre acontece, mas certamente, a viagem é um susto durante todo o caminho. E, às vezes, o sobressalto continua, mesmo dentro de casa.

Os ricos brasileiros são pobres de tanto medo. Por mais riquezas que acumulem no presente, são pobres na falta de segurança para usufruir o patrimônio no futuro. E vivem no susto permanente diante das incertezas em que os filhos crescerão. Os ricos brasileiros continuam pobres de tanto gastar dinheiro apenas para corrigir os desacertos criados pela desigualdade que suas riquezas provocam: em insegurança e ineficiência.

No lugar de usufruir tudo aquilo com que gastam, uma parte considerável do dinheiro nada adquire, serve apenas para evitar perdas. Por causa da pobreza ao redor, os brasileiros ricos vivem um paradoxo: para ficarem mais ricos têm de perder dinheiro, gastando cada vez mais apenas para se proteger da realidade hostil e ineficiente.

Quando viajam ao exterior, os ricos sabem que no hotel onde se hospedarão serão vistos como assassinos de crianças na Candelária, destruidores da Floresta Amazônica, usurpadores da maior concentração de renda do planeta, portadores de malária, de dengue e de verminoses. São ricos empobrecidos pela vergonha que sentem ao serem vistos pelos olhos estrangeiros.

Na verdade, a maior pobreza dos ricos brasileiros está na incapacidade de verem a riqueza que há nos pobres. Foi esta pobreza de visão que impediu os ricos brasileiros de perceberem, cem anos atrás, a riqueza que havia nos braços dos escravos libertos se lhes fosse dado direito de trabalhar a imensa quantidade de terra ociosa de que o país dispunha. Se tivesse percebido essa riqueza e libertado a terra junto com os escravos, os ricos brasileiros teriam abolido a pobreza que os acompanha ao longo de mais de um século. Se os latifúndios tivessem sido colocados à disposição dos braços dos ex-escravos, a riqueza criada teria chegado aos ricos de hoje, que viveriam em cidades sem o peso da imigração descontrolada e com uma população sem miséria.

A pobreza de visão dos ricos impediu também de verem a riqueza que há na cabeça de um povo educado. Ao longo de toda a nossa história, os nossos ricos abandonaram a educação do povo, desviaram os recursos para criar a riqueza que seria só deles, e ficaram pobres: contratam trabalhadores com baixa produtividade, investem em modernos equipamentos e não encontram quem os saiba manejar, vivem rodeados de compatriotas que não sabem ler o mundo ao redor, não sabem mudar o mundo, não sabem construir um novo país que beneficie a todos. Muito mais ricos seriam os ricos se vivessem em uma sociedade onde todos fossem educados.

Para poderem usar os seus caros automóveis, os ricos construíram viadutos com dinheiro de colocar água e esgoto nas cidades, achando que, ao comprar água mineral, se protegiam das doenças dos pobres. Esqueceram-se de que precisam desses pobres e não podem contar com eles todos os dias e com toda saúde, porque eles (os pobres) vivem sem água e sem esgoto. Montam modernos hospitais, mas tem dificuldades em evitar infecções porque os pobres trazem de casa os germes que os contaminam. Com a pobreza de achar que poderiam ficar ricos sozinhos, construíram um país doente e vivem no meio da doença.

Há um grave quadro de pobreza entre os ricos brasileiros. E esta pobreza é tão grave que a maior parte deles não percebe. Por isso a pobreza de espírito tem sido o maior inspirador das decisões governamentais das pobres ricas elites brasileiras.

Se percebessem a riqueza potencial que há nos braços e nos cérebros dos pobres, os ricos brasileiros poderiam reorientar o modelo de desenvolvimento em direção aos interesses de nossas massas populares. Liberariam a terra para os trabalhadores rurais, realizariam um programa de construção de casas e implantação de redes de água e esgoto, contratariam centenas de milhares de professores e colocariam o povo para produzir para o próprio povo. Esta seria uma decisão que enriqueceria o Brasil inteiro - os pobres que sairiam da pobreza e os ricos que sairiam da vergonha, da insegurança e da insensatez.

Mas isso é esperar demais. Os ricos são tão pobres que não percebem a triste pobreza em que usufruem suas malditas riquezas.



Texto de Cristovam Buarque.